Editorial

Carlos Farate

A dessacralização da psicanálise além da clínica e aquém da cultura: solos virtuosos, dissonâncias teóricas, explorações terapêuticas e improvisos meta-artísticos

O número 41(2) da Revista Portuguesa de Psicanálise pode ser lido, escutado, sentido olfativamente, tateado e saboreado como obra literária, objeto artístico finamente colorido e elegantemente esculpido e peça musical de sonoridades complexas, entre o exótico, o impromptu, o harmonioso, o dissonante e o virtuoso. Mas sempre com rigor científico e riqueza teórica, seja nos diálogos e nas controvérsias multilinguísticas que aprofundam o pensamento crítico e alentam o conhecimento que funda a práxis, seja nas explorações clínicas multifocais e nas experimentações terapêuticas inovadoras, seja, ainda, e finalmente, na expansão dos limites da narrativa psicanalítica aplicada às artes visuais e à literatura.

À guisa de Abertura, a excelente e melodiosa entrevista que Bruno Ferreira e Conceição Melo Almeida entreteceram a (com) Giuseppe Civitarese, destacado pensador da práxis psicanalítica de inscriptio cultural italiano e mundividência filosófica abrangente, numa lineage pós-bioniana distinta e além da influência do conterrâneo Antonino Ferro e da coconstrução narrativa, a meio caminho da genial versão da teoria física do campo (explorada por Kurt Lewin e pela psicologia da Gestalt) que o casal franco-argentino Baranger legou à psicanálise e da rêverie em dreamwork alfa reinventada por Wilfred Bion. Em andamento allegro majestoso, e com momentos de virtuose aliciantes, Civitarese brinda-nos com uma masterclass acerca de conceitos, tais como a intersubjetividade, o «enactment» e a rêverie. A ler!

Logo de seguida, um dueto encantador de duas mentes brilhantes, João Sousa Monteiro, o discreto psicanalista português que conhecíamos (pouco) das entrevistas em que nos ofereceu falas sublimes de João dos Santos e de Carlos Amaral Dias, entre a escrita e a radiocomunicação, e o enorme psicanalista anglo-americano Donald Meltzer. Um diálogo especulativo inspirado, através do qual a atual RPP, pela mão inspiradora e cúmplice da destacada psicanalista Maria do Carmo Sousa Lima, faz descobrir aos seus leitores um João Sousa Monteiro discípulo esclarecido, profundo e inovador do mestre Donald Meltzer. O diálogo brilhante, cúmplice e comovente, como bem refere Carmo Sousa Lima na Introdução, recordando-nos que a entrevista decorre no dealbar da elaboração da teoria do conflito estético por Meltzer, tem momentos de recitativo genial, de leitura encantatória e esclarecida, de que realço o finale em que Meltzer critica a divisão espúria entre arte e ciência, postulando que a arte-ciência é a verdadeira atividade criativa. Em «fuso» epistemológico distinto, mas em veia crítica analógica, J-M. Lacan também postulou que é na linguagem-ciência que reside a verdade psíquica criativa.

E, para clôture com «chave de ouro» a esta Abertura auspiciosa, o artigo original da grande psicanalista suíça-francesa Florence Guignard, que, a instâncias do convite formulado pela nossa assistente editorial Liliana Castro, nos oferece um texto sintético, despojado, mas iluminado, em que introduz o conceito do Infantil que foi desenvolvendo ao longo do tempo na psicanálise infantojuvenil e do adulto, a fim de alargar o inconsciente dinâmico aos «laços-entre-os-laços» que expandem a comunicação espaciotemporal no âmago da relação analítica. Num comentário preciso, rigoroso e esclarecido, a destacada colega Maria Fernanda Alexandre, pioneira da psicanálise da infância e adolescência na SPP, apresenta-nos a amiga Florence Guignard e realça os méritos do Infantil para a teoria da técnica psicanalítica, destacando a inovação morfológica que liberta o infantil da adjetivação freudiana, transformando-o em substantificação pós-kleiniana.

Passo aos contributos que intitulei improvisos meta-artísticos, pelo comentário editorial ao afresco narrativo impresso nas páginas da revista em modo tríptico, por Ana Belchior Melícias, Ana Luísa Ferreira e Rita Marta, que revisita a obra-vida, e a vida-obra, da pintora luso-inglesa de origem portuguesa Paula Rego, cujo talento esfuziante e o estilo naturalista de uma sensorialidade mística oculta ao revelar, e revela ao ocultar, o seu mundo interno. Como se assistíssemos a um rêve éveillé de uma dreamlife entre aventura artística e desventura psíquica no feminino, a que a análise do conteúdo psicanalítico da arte pictórica e miniatural desvela, para as coautoras, as «histórias e segredos». Num bem articulado terceto, a espaços de cambiante barroca e de imagética profusamente ornamentada, entre a casa-ateliê e o ateliê-mundo interno povoado de objetos rituais, figuras icónicas entre o ambíguo, no sentido de José Bleger, e o primitivo, e que só parcialmente é externalizado em realizações picturais entre a fantasmagoria pré-genital e a fantasia edipiana “clivada “ de representação homossexual no feminino, uma das autoras hipotetiza que, em resposta (possível) a uma bissexualidade psíquica insuficientemente elaborada, entre o primitivo, o fragmentado, o pré-genital e o edipiano, Paula Rego «escolhe» a pintura como tentativa de integração do feminino e do masculino, isto é, de integração de uma bissexualidade psíquica «clivada».

Já a surpreendente recensão da obra de um escritor psicanalista no lugar de encontro, também «encruzilhada tebaica», como escreve o ensaísta, do psicanalista escritor ― que assina pelo nome fictício do alter ego literário Tobias G. Alte ― com que Vasco Santos, ele mesmo editor psicanalista na «encruzilhada tebaica» do psicanalista editor, nos presenteia é um ensaio de verve irresistível, no qual, a partir da interrogação barthiana «Porque se escreve?», desenvolve um excurso literariamente rico e psicanaliticamente brilhante acerca do que intitula «A vida policial das palavras». Particularmente interessantes são tanto a glosa da tragédia de Édipo Rei (que inspirou Sigmund Freud na interpretação cultural da sexualidade biológica que revolucionou a compreensão do psíquico no humano, e vice-versa) como primeiro «thriller» policial romanceado da história, como a inspirada citação do poeta brasileiro Mário Quintana, segundo a qual «A verdade é uma mentira que ainda não aconteceu», en clôture a um texto soberbo.

As explorações terapêuticas inauguram duas novas secções da revista: «Estudos experimentais e empíricos» e «Psicanálise comunitária e das organizações».

Na primeira das secções, o artigo de Didier Drieu, Martine Chaumet, Isabel Duarte e Teresa Rebelo dá conta de um trabalho teórico-experimental de grande riqueza e oportunidade psicoterapêutica, que explora o efeito terapêutico da mediação pela linguagem fotográfica subjetiva, a Photolangage©, na psicoterapia de grupo, psicodinâmica dirigida, no caso deste artigo, a adolescentes institucionalizado(a)s em retração/abandono escolar e em rotura de investimento objetal, com o objetivo de libertar, parcialmente que seja, a fala de um dizer (ainda) inviável em relação a cenas de um arquivo mnésico, cuja violência disruptiva, primitiva ou «arcaica» obvia à possibilidade de representação, encerrando-as num «sarcófago» psíquico em que a omissão mnésica deriva em agir não mentalizado. As referências teóricas a autores, sobretudo da riquíssima escola psicanalítica francesa (Kaes, Cahn, Janin, Houzel, Jeammet, de entre outros), e a expressiva ilustração clínica recomendam a leitura deste interessante trabalho clínico-empírico.

Quanto à segunda secção, é de destacar a riqueza e a coragem ética e psíquica do trabalho psicoterapêutico que, em ambiente institucional e em estratégia multifocal, o primeiro autor, Filipe Silva, conduz com uma menina, que, de modo elegante, ele e a coautora do artigo, Ana Belchior Melícias, nomeiam Rosa, inspirados na flor selvagem ― a Rosa de Jericó ― que cresce e sobrevive em sólidos áridos e em ambiente agreste, como esta menina rejeitada, negligenciada, depois adotada precariamente, e de novo rejeitada-negligenciada, num ciclo interminável nascimento-morte-renascimento. Aqui, também os desenhos, de forte matiz expressiva, a lembrarem alguns aspetos do «umbigo do sonho-pesadelo» das pinturas de Paula Rego, irão dar conta da evolução corajosa de uma menina dotada, tal como o seu terapeuta, de uma capacidade de revivescência psíquica incomparável (psicoterapia a fazer lembrar o trabalho psicanalítico com um menino do espetro autístico, superiormente descrito por Lawrence Brown no número anterior da RPP).

Pelo seu lado, o psicanalista argentino Hugo Goldiuk escreve um artigo que trata de modo freudiano, com projeções kleinianas discretas, de um tema crítico no trabalho psicanalítico com crianças, adolescentes e adultos, mais precisamente, «O que não queremos escutar» no infantil que a criança traz à sessão com o(a) psicanalista adulto(a). A análise das contradições da transferência-contratransferência e dos movimentos identificatórios aos pais internos e ao self infantil da criança (já consideradas no «Tema em Debate» do número 41(1) da RPP) dispõe de um carácter didático interessante. Destaco, ainda, a dissonância teórica entre Goldiuk, que valoriza o papel das Sociedades Psicanalíticas IPA na formação de psicanalistas de crianças e adolescentes, e Donald Meltzer, que critica de modo contundente, na entrevista-diálogo com João Sousa Monteiro, as mesmas Sociedades, pela insistência numa política de formação centrada na psicanálise do adulto (posição crítica sustentada por uma destacada psicanalista de crianças e adolescentes argentina, Monica Santolalla, num painel intitulado «La infância del Psicoanálisis», que partilhou comigo, com Carlos Barredo e Jorge Bruce no último Congresso da IPA).

Já o Tema em Debate acerca do «Movimento psicanalítico em Portugal: história e atualidade» é introduzido pelo colega João Seabra Diniz, num texto intitulado «Um Longo Caminho», no qual, em andamento que soa a um largo sinfónico, realça a pujança histórica e científica da psicanálise desde os primórdios vienenses na transição do final da idade clássica para a modernidade, identificando-lhe a pulsão pelo conhecimento do humano (com referências a Rousseau e a Vergote) e ensaiando, mesmo, de modo curioso, e generoso, a continuidade crítica do saber antigo ― bíblico ― e do saber moderno ― psicanalítico ― sobre a humanidade. Já as colegas Maria José Gonçalves e Maria Fernanda Alexandre respondem em toada Andante molto e Adágio ao descreverem criticamente a trajetória do movimento psicanalítico em Portugal a partir do inscriptio histórico vienense. A primeira fá-lo através da descrição do percurso das primeira, segunda e terceira gerações dos psicanalistas que construíram a SPP, das vicissitudes repressivas do ancien régime aos desenvolvimentos mais recentes, passando pelo impulso libertador do 25 de Abril de 1974, sem deixar de referir a casa-mãe da SPP, o Instituto do Porto e a RPP. Conclui com uma nota de interrogação em relação ao futuro, preocupada, em particular, com a expansão, em seu juízo, pouco raisonnée e ainda irrefletida, da psicanálise à distância (além de enunciar outros desafios futuros, para que chama a atenção). Já a segunda analisa criticamente o desenvolvimento do movimento psicanalítico em Portugal a partir da influência que o contexto europeu e internacional foi tendo no desenvolvimento da SPP, em particular a progressiva integração da SPP e dos psicanalistas portugueses na FEP e na IPA, concluindo com a referência a Santo Agostinho em relação ao caminho ainda a percorrer. Vasco Santos introduz a nota dissonante e polémica de agitateur des consciences, du côté de l’inconscient, através de um brilhante e irreverente excurso filosófico, literário e psicanalítico. Conclui a polémica discussão enunciada no título ― «Psicanálise: escândalo e crítica» ― em convergência tácita com o título deste meu editorial, «A dessacralização da psicanálise além da clínica e aquém da cultura», ao afirmar, em sonância musical precipitato, que «A psicanálise é crítica e escândalo. Ou não será!».

Finalmente, uma palavra de apreço ao trabalho dos revisores e revisoras científico(a)s dos artigos que foram submetidos durante este ano a publicação na nossa revista. Cada vez mais, o trabalho de revisão científica é de fundamental relevância para a atualidade e para o futuro expansivo da revista A todos, o agradecimento em meu nome e em nome dos colegas-pares do atual, e do anterior, Conselho Editorial da RPP. Pela primeira vez, registamos os nomes de todos aqueles que nos ajudaram neste ano de 2021, e futuramente encontraremos os meios de os valorizar curricularmente de modo mais eficiente.